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Foto do escritorSINDPERS NA LUTA

GUIA BÁSICO PARA VOCÊ ENTENDER A CRISE VENEZUELANA

chavismo está passando por um momento decisivo. E, como era de se esperar, está dividindo opiniões e suscitando paixões. O mais curioso é que tais controvérsias não estão localizadas apenas na divisão clássica, esquerda e direita, mas estão gerando conflitos dentro do próprio campo progressista.

Só para dar um exemplo, o PSOL–RJ publicou uma nota intitulada “Com o povo venezuelano, contra Maduro”. No texto, a executiva estadual criticava a posição nacional do partido, que havia se colocado ao lado do governo venezuelano. Segundo o PSOL-RJ, Maduro estaria adotando uma política econômica desastrosa e impondo uma:

“brutal repressão que cria uma tragédia humanitária em que o povo trabalhador sofre pela falta de alimentos e remédios. Maduro comete, ao mesmo tempo, cada vez mais atrocidades autoritárias, como suspender eleições, impedir legalização de partidos, prender oposicionistas, ordenar repressão brutal de manifestações, com mais de 100 mortos nas ruas desde o início do ano”.

Essa posição do partido foi duramente atacada por outros grupos de esquerda, que afirmavam que sustentar Maduro era defender a democracia. A Secretaria de Relações Internacionais do mesmo PSOL emitiu outra opinião:

“A Venezuela enfrenta dias dramáticos. O enfrentamento político interno coloca as forças políticas em claro confronto. De um lado estão quase duas décadas de conquistas populares, de apropriação da riqueza petroleira por parte do Estado, de expansão dos direitos e garantias sociais e de uma rota da transformações profundas. De outro está uma oposição de direita ultraliberal, golpista e com sólidos laços com a Casa Branca e com o sistema financeiro internacional.

Além disso, tais forças contam com o apoio dos governos conservadores da América Latina e da Europa e com o suporte dos golpistas brasileiros”.

Mas, afinal, quem estaria com a razão? Apoiar Maduro é ficar ao lado da democracia ou legitimar uma ditadura? Normal que as pessoas estejam confusas. Como seria possível partidários do mesmo campo ideológico proferirem juízos opostos sobre o mesmo fenômeno?

Primeiramente, gostaria de dizer que ambos possuem certa dose de razão. As avaliações são contraditórias por que a política é assim. Por outro lado, considero que esses dois grupos estão olhando na direção errada. Querem avaliar as ações de Maduro para saber se a Venezuela é ou não uma ditadura. Ora, democracia não se faz apenas com pessoas, mas, sobretudo, por meio das instituições. A democracia na Venezuela não funciona mais e o motivo não é o caráter autoritário de A ou B, mas é resultado da lenta degradação das instituições. Entender esse processo é fundamental, caso realmente queiramos que o Brasil não “vire uma Venezuela”.

Um pouco da história da Venezuela

Caricatura de Jóvito Villalba , Rómulo Betancourt e Rafael Caldera assinando o acordo de Punto Fijo. Arte de Pedro Leon Zapata.


À semelhança da Colômbia, a Venezuela sempre foi dominada, desde a independência, por ditadores. Até os anos 1920, o país era atrasado e sua economia sustentada pela criação de gado. Os caudilhos tinham enorme influência social, simbólica e política. Esse cenário começou a mudar depois que, na década de 30, foi descoberto reservas de petróleo.

Porém, ainda seria preciso esperar algumas décadas para que a Venezuela conhecesse algo próximo a uma democracia. E ela veio por meio de um pacto, o Punto Fijo, que partilhava o poder entre os dois principais partidos: Ação Democrática e COPEI. Ou seja, tratava-se de uma democracia extremamente débil.

O acordo de Punto Fijo proporcionou a estabilidade política, enquanto o crescimento do preço do petróleo protegia a economia. Essas duas bases permitiram, por exemplo, que Venezuela passasse pelos turbulentos anos 70 sem sofrer um golpe militar. Uma raridade na região. Mas esses acordos eram instáveis e não poderiam ser mantidos indefinidamente. Do ponto de vista político, a população permanecia excluída. E, na esfera econômica, o país tornou-se dependente do petróleo.

O modelo oligárquico também não permitia que a renda gerada chegasse a maior parte da população. Segundo o historiador Edwin Williamson, a pobreza que era de 15% na década de 50, disparou nas décadas seguintes, alcançando a impressionante marca de 50% em 1980. “Havia demasiadas pessoas que não retiravam qualquer vantagem do sistema e que tinham escassez de esperanças de melhorar a sua sorte”. (Williamson).

Esse ambiente de dificuldades se tornou explosivo com a chegada do neoliberalismo na Venezuela. O presidente Carlos Perez, seguindo a onda regional, adotou o receituário de austeridade imposto pelo Consenso de Washington. A ideia era estabilizar a economia. Mas não funcionou. Os custos sociais foram enormes e em pouco tempo Caracas passou a ser saqueada por populares em busca de alimentos e de bens de consumo.

Perez, em resposta, convocou o exército e passou a governar tutelado pelos militares. É nesse período que a esquerda tenta derrubar o presidente duas vezes. A primeira tentativa de golpe é promovida por um jovem coronel das forças armadas, Hugo Chavez.

O surgimento do chavismo

Chavez, ao ser preso, assumiu publicamente ser o líder e o único responsável pela conspiração. A coragem e determinação do ex coronel aumentou a sua popularidade e o tornou conhecido nacionalmente. Aproveitando os holofotes, ao ser solto, Chavez se candidata e vence as eleições presidenciais em 1998.

É nesse momento que os limites da democracia, num país tão desigual, começam a ficar evidente. A vitória de Chavez representava a falência do pacto de Punto Fijo. Pela primeira vez, um líder popular chagava ao poder, ostentando amplo apoio das camadas mais pobres. O chavismo era um corpo estranho no mundo político.

Pior, o novo presidente tinha um projeto reformista radical e maioria no legislativo. Do ponto de vista institucional, nada poderia frear tais reformas. Para ter uma ideia, já em 1999, uma nova constituição foi aprovada num referendo por 88% dos eleitores. Definitivamente, o povo apoiava o “bolivarianismo”. Mas nada seria simples.

É preciso entender que democracia e oligarquia não são necessariamente excludentes. Uma democracia formal pode conviver perfeitamente com uma estrutura social oligárquica. O conflito ocorre quando as regras democráticas são usadas contra esse modelo. E era isso que o chavismo estava propondo.

Algumas reformas – como a Lei de Terras, Lei de Pesca e Lei dos Hidrocarbonetos – chocavam-se diretamente com o interesse de grupos poderosos. A oposição dizia que o presidente estava instaurando uma ditadura, mas as sucessivas vitórias eleitorais e o apoio popular esvaziavam esse discurso.

A gota d’água veio quando Chavez trocou o conselho administrativo da PDVSA, a companhia de petróleo que administrava a principal fonte de recursos do país. Sem saída e vendo seu poder ameaçado, a oposição tentou uma solução armada. Em 2002 Chavez foi deposto num golpe desastroso, que duraria poucas semanas. A reação dos chavistas permitiu a volta do presidente, dessa vez, ainda mais popular.

Nesse ponto é preciso algumas explicações: o sistema democrático, para funcionar, precisa de uma alta consciência política e respeito às instituições. No momento em que a legalidade é quebrada, todo o sistema fica ameaçado e a volta da normalidade legal é extremamente complicada.

É, portanto, após do golpe de 2002 que se inicia a falência das instituições venezuelanas. A oposição buscava meios para derrubar o presidente e Chávez queria barrar o avanço da direita. Nesse jogo de força, as instituições foram perdendo sua função de mediadora dos conflitos políticos e passaram a ser ocupada por partidários de um dos lados. A lógica era militar, de marcar posição e ocupar território. Cada grupo usava os meios a sua disposição para enfraquecer o adversário. Nesse embate, a democracia agonizava.

Já a imprensa conspirava. Chavez cassava concessão de algumas emissoras. Os empresários promoviam greve e desabastecimento. O governo controlava os preços e nacionalizava algumas empresas. A oposição convocava referendos para derrubar Chavez e o presidente se aproximava do povo por meio da criação de comitês localizados. Enfim, tais medidas não eram resultado de um projeto de país ou de governo, mas um jogo de ações e reações.

A dependência venezuelana do petróleo

PDVSA, a estatal venezuelana de petróleo.


É nesse momento também que o preço do petróleo volta a crescer. A entrada de novos recursos possibilitou o aprofundamento dos programas socais. Chavez institucionalizou o apoio que vinha recebendo, com a criação do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), e criou as chamadas “missões”, ou seja, grupos formados para levar saúde e educação aos bairros mais pobres. Foram implantadas também as cooperativas de trabalhadores que, além de proporcionar maior popularidade ao presidente, diluía o poder dos empresários de impor o desabastecimento. Portanto, a consolidação do chavismo não ocorreu pela aceitação do jogo democrático pelos grupos antagônicos. Mas da vitória da esquerda na queda de braços com a direita. As bases desse “acordo”, como era de se esperar, eram extremamente frágeis.

A economia também tinha seus problemas. Se, por um lado, a subida do preço do petróleo permitiu a adoção dos programas citados acima; de outro, ela impediu que alternativas fossem pensadas e o país continuou dependente da exportação de um único insumo. Obviamente que, na primeira brecha, a oposição voltaria a desestabilizar o regime.

Essa brecha foi aberta em 2013 com a morte de Hugo Chávez. Nas eleições presidenciais daquele ano, Nicolás Maduro foi eleito para dar continuidade ao chavismo, porém, a vitória apertada (50,66% dos votos contra 49,07% de seu opositor) já demonstrava que o sucessor de Chavez não angariava o mesmo apoio. E, da fato, Maduro era inábil politicamente. Os erros do governo foram agravados por uma nova queda no preço do petróleo. O chavismo só havia cumprido a primeira parte da sua promessa, de redistribuir os lucros da exploração do petróleo; porém, a segunda, que era justamente a diversificação econômica, havia falhado (95% das receitas vêm do petróleo). A queda do valor do barril no mercado mundial, portanto, abalou as bases do chavismo.

Um conflito político à beira de uma guerra civil

Numa democracia sólida, os efeitos negativos dessas mudanças seriam resolvidos pelos mecanismos legais. Mas, como vimos, a democracia venezuelana estava longe do ideal. Assim, a crise econômica virou arma política.

E deu resultado. Em 2015, depois de 16 anos, o chavismo perdeu o controle da Assembleia Nacional. A oposição, agrupada na Mesa de Unidad Democrática (MUD), conquistou maioria de dois terços no Legislativo. Isso os permitia paralisar o governo. Num democracia sólida, esse problema seria resolvido com a adoção de um governo de coalizão, que englobasse posições antagônicas.

Mas não era esse o caso. A ideia era usar o Congresso para aumentar o caos social e golpear o legado chavista. Como dito, as táticas eram de guerra, o que se almeja é a destruição do adversário, não um novo pacto político.

Após 2015, então, a queda de braços entre situação e oposição, tornou-se institucional. Executivo e legislativo não dialogam. A Assembleia emite atos, o governo os anula.

A Constituição só é respeita quando há interesse político. Em 2016, a MUD tentou aprovar um referendo para destituir Maduro, que, por sua vez, usou artimanhas burocráticas para barrar a iniciativa. Nesse mesmo ano, a Suprema Corte declarou o funcionamento da Assembleia Nacional ilegal e foi ignorada.

Enfim, os poderes se tornaram independentes. Não um do outro, mas da constituição. Viraram trincheiras de grupos políticos. Enquanto isso, a crise se agrava e a população agoniza com os efeitos das disputas políticas. Como reverter esse processo? Difícil responder. Mas não há saída possível sem um novo pacto político.

A oposição, ao contrário do que muitos pensam, está dividida. Nomes como Leopoldo Lopezquerem a qualquer custo colocar fim ao chavismo (não apenas a queda de Maduro). Há, porém, uma ala menos radical que pensa em chegar ao poder pela via democrática. Capriles, por exemplo, chegou perto disso em 2013. Para ele, apostar na democracia não é má ideia.

Parte da direita também está cansada da crise. O governo precisa abrir um canal de diálogo com essas pessoas, para, desse modo, isolar os golpistas e recuperar a estabilidade. Só assim será possível retomar os programas e a inclusão social. Se a queda na renda persistir, o chavismo não conseguirá sobreviver.

O cientista político Steven Levistsky definiu o sistema político venezuelano com o instigante conceito de autoritarismo eleitoral competitivo. O autoritarismo refere-se ao fato de que os grupos políticos querem se impor a qualquer custo, usando todos os meios disponíveis, legais ou não, para tal fim. O eleitoral competitivo, por outro lado, mostra que não se trata apenas de força bruta, há espaço para eleições limpas e disputadas.

A Venezuela é, portanto, um sistema político híbrido. Nem democrático, nem autoritário. Maduro não tem condições de instaurar uma ditadura. A oposição não tem poder para derrubá-lo. O esperado, numa contexto como esse, seria o conflito armado.

O que pode estar impedindo a eclosão de uma guerra civil, na atual conjuntura, é justamente esse resquício de democracia proporcionado pelas eleições. E foi justamente nisso que o governo resolveu mexer ao convocar a Assembleia Constituinte. Tal medida pode ter consequências muito sérias e os resultados podem ser desastrosos.

Maduro precisa fugir da polarização. A convocação de constituinte, porém, apenas a reforça. Todos os grupos oposicionistas são contrários a tal medida. A estratégia do governo deveria ser a de dividir a oposição, reforçando suas diferenças políticas. O caminho escolhido, porém, só reforça o bloco contrário ao governo.

A possibilidade de uma guerra civil é real e ela, a meu ver, representaria o fim definitivo do chavismo. Seria a desculpa perfeita para oprimir e perseguir toda a esquerda e iniciar um novo ciclo da direita do poder. Olhem para o mapa venezuelano. O país está num cerco geopolítico. Brasil e Colômbia estão contra o Maduro. A Venezuela está cercada de todos os lados. O tratado da UNASUL permite inclusive que as fronteiras de um país membro sejam fechadas militarmente.

Além do problema continental, há a influência dos EUA, com seu poder político e econômico. Este está doido para intervir. Basta um motivo. Parece que Maduro não percebeu ainda todos esses perigos.

Infelizmente o futuro não parece ser muito promissor. A estratégia adotada pelo governo está levando os antagonismos ao paroxismo. A Assembleia Constituinte não foi reconhecida pela oposição. O MERCOSUL suspendeu a Venezuela do bloco. Os EUA impuseram sansões econômicas e, ao que tudo indica, podem estar inclusive preparando uma intervenção militar. Qual será a saída de Maduro daqui para frente? Sem nenhum tipo de acordo, suas decisões serão ignoradas. E caso ele use a força, tal medida pode servir de justificativa para uma invasão estrangeira.

O impasse está criado. A política pode ser tanto a guerra por outros meios (Foucault) quanto a guerra pode ser a política por outros meios (Clausewitz). Conflitos fazem parte do jogo do poder. Mas os métodos para resolvê-los dependem da saúde institucional do país. Que os erros do nosso vizinho, pelo menos, sirvam como exemplo.

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