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Reforma Trabalhista e o papel dos sindicatos em um cenário de precarização do trabalho

Entrevista com Marilane Teixeira


Em 2017, a Reforma Trabalhista enviada pelo governo Temer (MDB) promoveu uma reforma estrutural nas relações de trabalho no Brasil. Mas esse não foi processo isolado, integrando um contexto internacional de flexibilização e precarização do trabalho e de ataques aos direitos dos trabalhadores dos setores público e privado. Para conversar sobre os impactos da Reforma Trabalhista e o papel e importância das entidades sindicais nesse cenário, convidamos Marilane Teixeira, doutora em desenvolvimento econômico pelo Instituto de Economia da UNICAMP, mestre em Economia Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pesquisadora na área de relações de trabalho e gênero Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (CESIT/IE – Unicamp).


SINDPERS - Quais os impactos da Reforma Trabalhista de 2017 no mundo do trabalho no Brasil?


Marilane Teixeira - Um primeiro balanço que fazemos, um balanço mais geral, indica que aquilo que a Reforma Trabalhista prometeu, em termos de flexibilização, novas formas de contratação e que isso facilitaria os processos de contratação por parte das empresas (que retomariam os níveis de contratação, os investimentos e a economia se recuperaria), não ocorreu. Desse ponto de vista, a Reforma Trabalhista foi um grande fracasso. De 2018 pra cá, praticamente não se gerou postos de trabalho formais, a economia patinou, com uma taxa de crescimento em torno de 1%, onde só cresceu o trabalho por conta própria e o trabalho informal. Uma das promessas da Reforma Trabalhista era justamente essa: de que, dada a insegurança jurídica de formas de contratação mais rígidas estabelecidas pela legislação brasileira, essas impediam que as empresas contratassem de forma mais protegida, então apelavam, muitas vezes, para o trabalho informal, para outras formas de contratação. A legislação foi alterada e isso não aconteceu. O trabalho informal continuou crescendo e o trabalho por conta própria continuou crescendo.


E qual é a primeira conclusão desse processo todo? É a de que, de fato, a retomada da atividade econômica, dos investimentos, não está na dinâmica do mercado de trabalho, está na dinâmica econômica. Ou seja, é a atividade econômica que, ao se recuperar, impulsionada pelo Estado, como indutor do desenvolvimento econômico através da retomada dos investimentos, seja em gastos sociais, seja em investimentos em obras públicas; daria o start para que as empresas voltassem a produzir para atender essa demanda, que vai ser, nesse primeiro momento, impulsionada por iniciativa do estado, e aí contratar. Portanto, não são formas de contratação mais flexíveis, como o contrato intermitente em tempo parcial, que vai fazer com que as empresas voltem à atividade econômica. Elas vão voltar a contratar se houver demanda para os seus produtos e serviços. E essas formas de contração mais precárias, na verdade, só conseguem piorar as condições de trabalho de uma forma geral. Ao invés de contratar com direitos, com a aplicação da legislação, a empresa contrata por tempo indeterminado, contrata como autônomo, contrata como PJ [Pessoa Jurídica], que são essas formas que se ampliaram por meio da Reforma Trabalhista.


Do ponto de vista da relações de trabalho, teve também um impacto muito grande no sindicalismo. Os sindicatos se fragilizaram pelo fim da contribuição sindical compulsória e tiveram que buscar outras formas de financiamento. Para uma boa parte do movimento sindical, a contribuição sindical compulsória tinha uma participação muito expressiva no orçamento geral. Então, teve um impacto muito grande nos sindicatos, com dispensa de funcionários, fechamento de subsedes e, em alguns casos, tivemos relatos de que alguns sindicatos pararam de atender e “encerraram” seus serviços prestados às categorias.


Por outro lado, também dificultou muito o acesso à Justiça do Trabalho, com uma série de restrições que foram impostas às pessoas que acessam a Justiça. O fim da obrigatoriedade da homologação no sindicato também é um fator muito determinante no acesso à Justiça do Trabalho porque era, muitas vezes, na homologação que se identificava as irregularidades em relação aos pagamentos e se encaminhava imediatamente para o jurídico, que tomava as medidas necessárias. Então, uma porta de entrada para o Judiciário eram as ações que eram movidas no âmbito da assessoria jurídica dos sindicatos através das homologações. E isso teve um impacto muito grande, as homologações praticamente se encerraram.


Também outros aspecto sobre as relações de trabalho: se intensificou a questão da intrajornada, com a redução para trinta minutos de almoço; se intensificou a questão do banco de horas, que pode ser feito, agora, por meio de acordo individual… Então, na verdade, ao abrir a possibilidade da prevalência do negociado sobre o legislado e a possibilidade dos acordos individuais se sobreporem aos acordos coletivos, à legislação e à própria Constituição, isso abre um leque de possibilidades para as empresas negociarem qualquer aspecto das relações de trabalho individualmente com o trabalhador, sem acesso do sindicato, seja por meio de acordo coletivo, seja por meio da convenção coletiva, ou de qualquer tipo de norma, ou da própria legislação. Isso ficou mais evidente na crise da covid-19 com as medidas provisórias 927 e 936, em que os sindicatos foram afastados como um ator importante nesses processos de negociação.


Ainda estamos amadurecendo os impactos da Reforma Trabalhista, mas é importante sinalizar que uma das grandes promessas, que era a de que, por meio da Reforma Trabalhista se retomaria os níveis de emprego, não ocorreu, ao contrário, o emprego se precarizou e a vulnerabilidade aumentou depois da Reforma Trabalhista.


Como a reforma trabalhista tem afetado os servidores do setor público?


Os servidores públicos, maioria estatutários, não são afetados diretamente em seus direitos pela Reforma Trabalhista. O que é afetado é o sindicato, a entidade representativa. Muitas dessas entidades recolhiam imposto sindical e sofreram com o fim da contribuição sindical compulsória, esse é um elemento importante. Mas temos também um contingente de servidores públicos que são celetistas, contratados por meio da CLT [Consolidação das Leis do Trabalho], e isso é um número bem expressivo no mercado de trabalho, não é um número pequeno. Cresceu também uma figura que é o trabalhador do serviço público sem carteira, tem mais de 2.5 milhões de pessoas nessas condições. Então não há um efeito direto nas relações de trabalho, porque o regime é diferente, mas há impacto indireto, sem dúvida.


Hoje o Brasil tem mais trabalhadores desempregados e desocupados do que empregados. Que fatores, aliados à pandemia de covid-19, nos trouxeram a esse cenário?


De fato, hoje nós estamos em um contexto em que a população fora da força de trabalho é superior à população na força de trabalho. Esse é o dado divulgado pela PNAD [Nacional por Amostra de Domicílios], referente ao mês de junho, que indica que estamos com 77 milhões de pessoas fora da força de trabalho, enquanto que no período anterior eram 67 milhões. Então, foi um incremento de 10 milhões de pessoas fora da força de trabalho. Ao mesmo tempo, as pessoas ocupadas eram 92 milhões no período anterior, e em junho eram 83 milhões, uma diminuição de 9 milhões de pessoas entre os ocupados. Mas o impacto na taxa de desemprego foi pequeno. Por que? Porque as pessoas, nesse contexto da covid-19, saíram diretamente do mercado de trabalho e foram para a população fora da força de trabalho. Porque o impacto maior da crise, embora tenha afetado a todos indistintamente, foi para os trabalhadores por conta própria. Eram 24 milhões de pessoas por conta própria no período anterior e hoje estamos com 21 milhões. Essas pessoas trabalhavam por conta própria na rua, como vendedores ambulantes, vendedor a domicílio, condutores, cabeleireiras, manicures… Então, são pessoas que ficaram sem trabalho da noite para o dia. Sem trabalho e sem renda. São pessoas que só estão conseguindo sobreviver porque estão apoiadas no auxílio emergencial de 600 reais, porque elas não têm para onde voltar e, provavelmente, o retorno de boa parte das pessoas que trabalham por conta própria vai se dar de forma muito progressiva e muito lenta. A maior parte desses trabalhos se refere a contatos pessoais e, com a exigência do distanciamento social, as pessoas vão ter resistência em utilizar esse tipo de serviços, justamente por conta do contato. Então essas pessoas tendem a permanecer muito mais tempo nessas condições e elas dependem muito do fluxo de renda que circula no conjunto da economia. Na medida em que cai brutalmente o fluxo de renda, elas também não têm para quem vender os seus produtos e serviços.


Então este é um contexto de retorno muito complexo porque a maior parte dessas pessoas estão ligadas a serviços pessoais e domiciliares, que vão ter um impacto muito grande por conta da queda da da renda, inclusive daqueles que se mantiveram empregados. Porque muitas, ou tiveram seu contrato suspenso por 60 dias, e agora com a possibilidade de prorrogar a suspensão por mais 60 dias, ou tiveram a redução de jornada com a redução de salários. E a primeira coisa que elas fazem é reduzir um determinado serviço, serviços domiciliares, serviços pessoais, então isso vai impactar nos trabalhadores por conta própria e domésticos.


Tivemos uma queda também do trabalho sem carteira, de em torno de três milhões, e também em torno de três milhões no trabalho com carteira. Se nós calcularmos o percentual do que corresponde, o trabalho com carteira teve uma queda de mais ou menos 10%, mas o trabalho sem carteira teve uma queda muito maior, foi de mais de 30%. Isso porque os trabalhadores sem carteira são justamente os mais frágeis, os mais vulneráveis, aqueles que o empregador não tem compromisso nenhum: ele não precisa pagar Fundo de Garantia, ele não precisa pagar direitos, porque essas pessoas, inclusive, têm relações de trabalho que são irregulares, são fraudulentas e, portanto, a dispensa delas é muito mais fácil. Também houve um impacto muito grande no trabalho doméstico, que caiu em mais de 1 milhão de pessoas. Nós tínhamos, antes da crise, quase 6 milhões de trabalhadores domésticos e, hoje, estamos com 4.7 milhões. E o impacto maior foi nos trabalhadores domésticos sem carteira, pelo mesmo motivo que eu citei anteriormente: é mais fácil dispensar porque o empregador não tem absolutamente nenhum compromisso com encargos, com direitos.


E é muito importante associar isso com o período anterior. Esse quadro já vinha evoluindo de forma muito desfavorável para o trabalhador nos últimos anos. Chegamos a um quadro em que, no primeiro trimestre deste ano, já estávamos com mais de 35 milhões de pessoas entre os trabalhadores por conta própria e os sem carteira, que é o conceito do trabalho informal de forma mais ampla. Isso sem falar nos quase 4 milhões de trabalhadores domésticos informais. Então foram quase 40 milhões de pessoas que, de uma hora para outra, se viram sem trabalho e sem renda e sem sequer ter acesso ao mínimo de proteção social, a direitos e ao seguro desemprego.


Que desafios a reforma trabalhista impõe aos sindicatos de trabalhadores dos setores público e privado?


É muito grande. Eu diria que estamos vivendo um período crucial hoje em relação ao futuro do sindicalismo brasileiro. O sindicalismo já vivia um processo de grandes desafios por conta das mudanças mais gerais do mundo do trabalho, que vinham no período anterior. As mudanças na forma de organização do trabalho, na gestão, a adoção de tecnologias de digitação, automação. A partir dos impactos da segunda revolução industrial já vinha um processo de fragmentação, com a relocalização da indústria pelo mundo, com as cadeias globais de produção, de forma muito intensa. No Brasil, isso se acentuou muito nos anos 1990, com a nova gestão da organização do trabalho, com a vinda de novas tecnologias, mas, principalmente, pelo processo de inserção do Brasil na nova ordem internacional, nas cadeias globais. Então se tem a terceirização, onde boa parte do trabalho que era realizado dentro da indústria passa a ser organizado a partir do setor de serviços; ou, dentro do mesmo local de trabalho, convive-se com várias formas de contratação.


E todas essas formas de contratação têm expressões diferentes do ponto de vista da organização sindical. Muitas vezes, a maior parte não tem sindicato que os represente, ou, simplesmente, são outros sindicatos que os representam. Então os sindicatos não conseguem representar o terceirizado, o autônomo, enfim, essas outras formas que se expressam dentro do ambiente de trabalho. E isso produziu um grau de pulverização muito grande, além de todos os efeitos que a ideologia neoliberal traz em relação ao empreendedorismo, ao individualismo, a uma sociedade muito mais competitiva, onde você tem poucas relações de solidariedade, de pertencimento, de consciência de classe. Ou seja, o trabalhador não constrói mais a identidade dele a partir do trabalho e no ambiente de trabalho. Então isso nos coloca um desafio muito grande, sobre onde essas identidades, do ponto de vista do trabalho, vão ser forjadas, se elas não se constituem mais no ambiente de trabalho. Isso coloca pro sindicalismo uma outra perspectiva, de organização junto com os movimentos populares, com movimento sociais, com debate sobre organização nos próprios territórios, o sindicato tem que ir para os bairros, comunidades, tem que se associar e se articular com os movimentos sociais, movimentos feministas, movimento anti-racista, com os movimentos populares, para pensar uma estratégia de intervenção onde você possa alcançar o trabalhador não só do ponto de vista do local de trabalho, mas de onde ele mora, de onde ele constrói relações de pertencimento e solidariedade.


Outro aspecto muito importante é que essas mudanças no mundo do trabalho impuseram também um certo distanciamento dos sindicatos dessas novas formas de organização. A pandemia impulsiona uma forma de organização do trabalho por meio do teletrabalho, mas que já estava de alguma forma presente no ambiente de trabalho. Como organizar esses trabalhadores? Se o sindicato perde a capacidade de ser um elemento de organização e de gestão do trabalho, discutindo e negociando condições melhores de como se organiza o trabalho, ele perde um papel fundamental, que é o papel da negociação. Então as relações de trabalho não prescindem dos sindicatos, ao contrário, há uma pulverização de formas de organização e de contratação onde o sindicato nunca foi tão importante e tão relevante na definição das formas de organização do trabalho: em relação à jornada, salários, em relação ao tempo. O sindicato tem um papel muito importante, que nós precisamos retomar nesse momento.


Qual é o papel dos sindicatos para o mundo do trabalho de hoje e como eles podem atuar para reverter esse quadro de crescente desvalorização dos trabalhadores e retirada de direitos


Primeiro, acho que tem que se discutir objetivamente a possibilidade de unificar sindicatos. Nós temos mais de 11 mil sindicatos no Brasil, é impossível organizar uma dinâmica de intervenção com um grau de pulverização tão grande. Então, nós precisamos construir sindicatos fortes. Isso é um primeiro aspecto. Outro é o sindicato se organizar a partir do local de trabalho. Ele tem que representar todos os trabalhadores do local de trabalho, independente à categoria profissional a que pertence. O sindicato tem que estimular a organização no local de trabalho, não pode ver a organização no local de trabalho como concorrente, como se estivesse competindo com o sindicato. É a velha ideia de sindicato no local de trabalho. Não nos termos da Reforma Trabalhista, que propõe uma organização no local de trabalho e representação no local de trabalho, para discutir os termos do trabalho com a empresa, mas prescindindo do sindicato, independente, de forma autônoma. Não. Nós queremos o sindicato dentro do local de trabalho.


Outro aspecto é retomar uma agenda em relação aos temas centrais do ambiente de trabalho, o que está mudando... Tem mudanças muito importantes: a forma de organização do trabalho, a questão da produtividade, as medidas de desempenho individual que as empresas promovem pela participação nos lucros e resultados, estabelecimento de metas individuais, contratações que são mais pontuais para se ajustar à dinâmica econômica, como o contrato de trabalho intermitente. Nós precisamos enfrentar essa lógica de ajustar o trabalho às necessidades e dinâmicas das empresas. A tendência é, cada vez mais, as empresas racionalizarem os processos de produção e reduzir os tempos mortos. Isso implica novas técnicas de gestão e organização do trabalho, mas não é transferido para o trabalho. Isso significa, inclusive, reduzir o rendimento médio. Na Reforma Trabalhista, está muito claro: é o salário hora. Se você reduz a jornada de 44 para 32 horas ou para 30 horas, o trabalhador provavelmente vai produzir o mesmo que produzia nas 44 horas, mas vai receber por 30 horas. Isso está voltando com muita força agora, por meio das medidas que Guedes vem anunciando, de repensar a questão da hora-trabalho. E no contexto do debate dos aplicativos, essa é outra questão muito importante.


Existem novas formas de trabalho, que surgem a partir das plataformas e que o sindicato não organiza, mas que eles também começam a estabelecer formas de organizar própria, e têm estabelecido processos de resistência muito importantes. Como foi o 1º de julho, depois o 25 de julho [dias de greve dos entregadores por aplicativo], as paralisações exigindo melhores condições de trabalho. Os sindicatos não podem ter a perspectiva de incorporá-los, de absorvê-los para a sua lógica, mas de interagir com eles, aprender com essas formas de organização mais horizontalizadas e integrá-las, inclusive, na sua perspectiva.


O futuro do trabalho tem que ser pensado sob várias perspectivas. Os sindicatos vão ter que aprender a conviver com outras formas de organização do trabalho que se formam a partir dos novos movimentos. Não é enquadrá-los para dentro do sindicato, mas o sindicato se abrir para essas novas formas de organização e integrá-las como um processo único, como forma de resistência e de luta unificada a partir da classe trabalhadora. Inclusive com os empreendimentos solidários, com as outras formas de trabalho que surgem, principalmente, nas periferias, e que não são necessariamente as formas de assalariamento tradicional. São formas cooperativadas, por meio de empreendimentos... É importante que essas formas de organização também possam ser vistas como forma de resistência e de luta da classe trabalhadora em relação ao capital. Temos que ampliar nosso leque de possibilidades. Esse trabalho assalariado tradicional tem cada vez menos peso. Não é que ele vai sumir, vai desaparecer. É que a complexidade do mundo do trabalho mostra que, cada vez mais, há interações, relações muito sistêmicas entre indústria, comércio, serviço... O serviço, cada vez mais, precisa da indústria e a indústria está, cada vez mais, incorporada na área de serviços.


Temos que pensar uma nova matriz da estrutura produtiva que sirva para o bem comum, que não seja apenas mercantilizada. E aí os sindicatos têm que sair das suas caixinhas, têm que sair do corporativismo, da sua lógica, do seu setor. Temos que pensar o conjunto da classe, temos que pensar relações de solidariedade e construção de relações de pertencimento a partir da classe trabalhadora, em um conceito muito mais amplo, que é o que nós trabalhávamos e vínhamos trabalhando até muito recentemente.


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